Entrevista: neoliberalismo, pandemia, cooperativismo, empreendorismo

A pesquisadora do NEPeTEcs Fernanda Ikedo entrevistou a Profa. Dra. Kelen Christina Leite sobre o tema Neoliberalismo e Pandemia. Confira!

Fernanda Ikedo – O negacionismo tornou-se um conceito? Um comportamento? O quanto a lógica neoliberal dialoga com ele?
Profa. Dra. Kelen Christina Leite – Há que se ter presente que o negacionismo é uma realidade que sempre existiu na história. Sempre tivemos a existência de pessoas que, por diversos motivos, negam a realidade, se recusam a admitir, aceitar, assumir um fato ou um fenômeno que é verificável, comprovável, claro, evidente. Então, o negacionismo que se assiste agora, sobretudo em relação à COVID-19, o negacionismo em relação à ciência, às vacinas, não é algo surpreendente, assim como não é surpreendente o apego a curas milagrosas e remédios ineficazes. Outra coisa, porém, é o uso político que se faz do negacionismo, independentemente de ser ou não negacionista.
E aqui se abre um vasto campo de debates e discussões acerca do negacionismo em modo geral e dos negacionismos, bem como o papel do neoliberalismo na reprodução e no fortalecimento do negacionismo ou de determinados negacionismos. Mas também aqui há um debate intenso que o espaço não nos permite abordar. Elemento importante, no entanto, é que no caso brasileiro, estamos diante de um negacionismo por parte daqueles que nos governam, por parte dos agentes públicos que têm por obrigação, por função produzir políticas públicas de enfrentamento de uma pandemia. Essa é a tragédia brasileira.

Fernanda Ikedo – Gostaríamos que explicasse sobre a diferença de economia solidária e empreendedorismo.
Profa. Dra. Kelen Christina Leite – Há um intenso debate sobre o que é e o que não é Economia Solidária. Há diferenças teóricas e práticas sobre o que se entende por esse termo e termos correlatos como Economia Social, Economia Popular, Economia Civil e outros. No entanto, desde a década de 1990 houve aquilo que podemos denominar de um ressurgir de práticas que passaram a ser chamadas, de modo geral, de Economia Solidária com o surgimento de novas cooperativas e formas análogas de produção associada em muitos países e ainda tantas outras experiências que buscam conjugar economia e solidariedade nas relações de produção.
A esse respeito podemos enumerar, por exemplo: o movimento de Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, o Comércio Équo e Solidário, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Rede Global de Trocas, Sistemas de Micro-Crédito e de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Grupos de Compras Solidárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Sociais, Cooperativismo e Associativismo Popular, entre muitas outras práticas que costumam ser situadas como alternativas ao modelo vigente, entrando no vasto campo da chamada Economia Solidária.
Paul Singer, economista brasileiro e Secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego do governo do Presidente Lula, sustenta que a Economia Solidária seria uma criação em processo contínuo de luta dos trabalhadores contra o capitalismo, não sendo assim apenas um projeto intelectual de caráter utópico. Neste longo processo é inegável a contribuição dos assim chamados socialistas utópicos dentre os quais destacam-se Robert Owen, Charles Fourier, Willian King e Louis Blanc. A “Sociedade dos Pioneiros Eqüitativos” é um exemplo disso. Eram todos militantes operários ownistas ou cartistas. A sociedade seguia alguns princípios que passaram a constar da tradição do Movimento Cooperativista, ou seja: a sociedade seria governada democraticamente; a sociedade seria aberta com quota mínima de capital igual para todos; o dinheiro investido seja remunerado a determinadas taxas de juros; tudo o que sobrasse seria distribuído entre os sócios; as vendas seriam à vista; os produtos devem ser de boa qualidade; promoção da educação dos sócios aos princípios do cooperativismo; a sociedade deveria ser política e religiosamente neutra.
Percebe-se, assim, que as contribuições para a formação da Economia Solidária foram variadas, tendo, porém, como denominador comum, para além das diferenças, o agrupamento voluntário que possui sua origem na referência a um vínculo social que se mantém pela realização de uma atividade econômica, na qual a participação entra, portanto, no princípio do comportamento econômico que é a reciprocidade como regulador dos relacionamentos entre as pessoas associadas.
Um segundo elemento em comum é que, enquanto se baseia na igualdade entre os membros, a ação comum é o vetor de um acesso ao espaço público que dá aos seus membros a capacidade de fazer, sentir e agir em vista de uma mudança institucional. O Prof. Singer aponta, desde os anos 2000, que podemos distinguir entre o cooperativismo tradicional e o novo. Esse, por sua vez, traz as marcas da crise ideológica da esquerda e a necessidade de enfrentar o neoliberalismo e a atual crise das relações de trabalho que se mantém e se aprofunda. Esse novo cooperativismo constitui a reafirmação da crença nos valores centrais do movimento operário, ou seja: democracia na produção e distribuição; luta direta dos movimentos sociais pela geração de trabalho e renda, luta contra a pobreza e a exclusão social.
Neste sentido, a Economia Solidária surge como modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho. A Economia Solidária casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição (da produção simples) com o princípio da socialização destes meios (do capitalismo). Embora o modo solidário de produção e distribuição possa parecer, à primeira vista, um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias, Singer (2000:13) afirma que: Na realidade, ele constitui uma síntese que supera ambos. A unidade típica da Economia Solidária é a cooperativa de produção cujos princípios organizativos são: posse coletiva dos meios de produção; gestão democrática da empresa; repartição da receita líquida; destinação do excedente anual [aos cooperados.
Já o empreendedorismo é o contrário de tudo isso. É a ideologia segundo a qual todos podemos ser empreendedores de nós mesmos. É a lógica individual que predomina, é a lógica típica do capitalismo de colocar capital e meios de produção de um lado e trabalho assalariado (e hoje, nem sempre assalariado) do outro.

Fernanda Ikedo – A economia do mundo todo sofreu com a pandemia, no entanto o Brasil está entre os países que se deram mais mal. A que você atribui isso?
Profa. Dra. Kelen Christina Leite – Fernanda, é necessário se perguntar mal em relação a quê e a quem? Segundo dados da Oxfam, divulgados na semana passada por meio do relatório “Desigualdade Mata”, os 10 homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas durante a pandemia, um crescimento de 1.3 bilhão de dólares por dia, enquanto a renda de 99% da humanidade caiu e 160 milhões de pessoas entraram para a linha da pobreza. No Brasil, segundo o relatório, “são 55 bilionários com riqueza total de US$ 176 bilhões. Desde março de 2020, quando a pandemia foi declarada, o país ganhou 10 novos bilionários.
O aumento da riqueza dos bilionários durante a pandemia foi de 30% (US$ 39,6 bilhões). Os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza (US$ 121 bilhões) do que 128 milhões de brasileiros (60% da população).” Para você ter uma idéia da magnitude desses ganhos o relatório aponta que “um imposto único de 99% sobre os ganhos obtidos – apenas sobre os ganhos obtidos – pelos 10 maiores bilionários do mundo durante a pandemia poderia, por exemplo, pagar por: vacinas suficientes para toda a população do mundo; providenciar saúde pública universal e proteção social; financiar ações de adaptação climática; e, reduzir a violência de gênero em mais de 80 países. E esses 10 bilionários ainda seguiriam com US$ 8 bilhões a mais do que tinham antes da pandemia.
Isso é um escândalo, é o escândalo do capitalismo. No nosso país a fome e a miséria voltaram, o país havia saído do mapa da fome e voltou. Dados de fim de 2020 revelam que 55% da população brasileira se encontrava em situação de insegurança alimentar. A pandemia atingiu de forma muito desigual as pessoas, se considerarmos vários marcadores sociais das diferenças como raça, classe e gênero, por exemplo. A desigualdade no interior dos países e entre os países aumentou enormemente neste período pandêmico.
Outros dados apontam que países que souberam combater melhor a pandemia, com respostas sanitárias rápidas e sérias, aliadas a políticas públicas de proteção dos empregos, da renda e da sobrevivência das empresas e investiram em vacinas – tão logo elas estiveram disponíveis – são as que atingem melhores resultados e, nesses quesitos todos, o Brasil optou deliberadamente pela ineficiência.

Fernanda Ikedo – Há no cenário atual uma pressão para a “economia não parar”, vista desde quando houve o isolamento, no começo da pandemia em 2020, quando os comércios não queriam fechar as portas. Agora, as indústrias colocam pressão para trabalhadores, mesmo doentes, trabalharem. A opinião popular varia muito. Como você explicaria isso?
Profa. Dra. Kelen Christina Leite – Estamos entrando no terceiro ano de pandemia. As pessoas estão saturadas, cansadas, esgotadas e o governo federal, desde o início da pandemia, optou ora pelo negacionismo, ora pela dubiedade; pela responsabilização de todos os males advindos da pandemia para os estados e municípios, por exemplo em relação as medidas restritivas; colocou em dúvida a eficácia das vacinas; propagou tratamento comprovadamente ineficaz e tantas outras coisas.
Deste modo, não dá para esperar que a população esteja esclarecida, pois há um esforço gigantesco do governo federal em fazer exatamente o contrário. No entanto, fazer com que pessoas contaminadas trabalhem é criminoso, é um atentado contra a saúde pública e quanto a isso não há o que tergiversar. Há que denunciar, há que se ter uma atuação forte dos sindicatos e da justiça. Outra questão é o que muitos países, com governos mais sérios do que o brasileiro, por meio de seus ministérios da saúde, de seus comitês científicos e a própria OMS estão discutindo quanto ao tempo de quarentena para as pessoas atualmente contaminadas, como se portar diante da atual variante que é super contagiosa e etc. Há uma discussão séria e legítima em torno dessas questões.

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